EAD, evasão e busca de significado – como juntar as pontas

As instituições fazem a sua parte ao manterem contato com mercado e sociedade, tornando os currículos “vivos”, o que potencializa a formação de profissionais com competências de fato relevantes

A covid-19 marcou o início da década de 2020 no mundo e, para o ensino superior, representou uma fase de dificuldades e transformações. Mas os desafios não pararam por aí: em novembro de 2022, o lançamento da ferramenta ChatGPT trouxe a inteligência artificial generativa para o dia a dia das pessoas comuns e, também, de educadores e estudantes.

O ensino superior do Brasil cresceu graças à expansão da modalidade EAD promovida pelas instituições particulares. Ninguém sabe precisar se ainda há espaço para mais matrículas no EAD. Desde os primeiros cursos, no começo dos anos 2000, muita tecnologia se desenvolveu, e as regras estavam defasadas. O novo marco regulatório deverá balizar com mais precisão a modalidade e concretizar a busca, do setor e da sociedade, por mais qualidade. Os gestores enxergam o fim da dicotomia presencial versus a distância.

“Existem cursos que têm caminho mais fácil por EAD, outros que se beneficiam mais do presencial. Há públicos para os dois modelos – temos estudantes que migraram para o EAD mas voltaram para o presencial porque preferem assim. Mas, durante a pandemia, houve muita pesquisa de metodologias para explorar a potencialidade das tecnologias. Essa inovação e o aprendizado de novos recursos beneficiaram as duas modalidades”, garante Carla Letícia Alvarenga Leite, pró-reitora no centro universitário Faesa, no Espírito Santo.

Janes Fidélis Tomelin, vice-presidente acadêmico da Ânima, concorda que desenvolvimentos recentes ajudam os estudantes independentemente das fronteiras entre presencial e a distância. “Para além da modalidade, eu vejo novas oportunidades de experiências de aprendizagem. As discussões da comunidade acadêmica estão voltadas para entender como se deve aprender”, afirma Tomelin. Segundo ele, os avanços das neurociências, por exemplo, podem ajudar a promover mais aprendizados em qualquer modalidade.

Apostar numa proposta relevante de extensão pode ser a chave para criar cursos de EAD que garantam sua relevância e, dessa forma, a permanência do estudante, o que ainda é um dos principais desafios. “Antes, EAD era um modelo só para dar aula. A partir da obrigatoriedade da extensão para as duas modalidades pode-se garantir o encontro necessário entre universidade e comunidade. Temos cursos de EAD muito frágeis, mas isso não é inerente à modalidade e vejo que a pandemia ajudou a quebrar esse tipo de preconceito”, afirma Antonio Freitas, pró-reitor de ensino, pesquisa e pós-graduação da FGV.

Manuir Mentges, reitor da PUC-RS, também acredita que a busca por abordagens significativas deve superar a discussão de modalidades. “Vejo na educação um movimento semelhante ao do home office para as empresas. Por um tempo, foi a única saída. Depois, recuou e hoje temos modelos híbridos. No ensino superior, precisamos olhar mais para as experiências significativas, mais para conexão com as empresas, extensão nas comunidades locais e alguma vivência no campus”, explica. 

 

Jornada individualizada

A evasão tem sido um desafio persistente e o que as instituições têm aprendido nos últimos anos é que devem olhar para a jornada completa de cada estudante. O acompanhamento tem de ser feito desde o primeiro momento. “É perceptível que os ingressantes que enfrentaram o pico da pandemia no ensino médio chegaram com menos conhecimentos. Se eles não conseguirem acompanhar os requisitos com o rigor acadêmico, a IES vai ter dificuldade em reter esses alunos”, diz Irineu Gianesi, presidente do Instituto Mauá de Tecnologia.

O lado “bom” da queda acadêmica dos calouros é que ela obrigou as IES a repensar estratégias. “O caminho é mudar os processos e fazer diagnóstico dos alunos que estão entrando. Como chegam com variação muito grande, não dá para tratar todos da mesma maneira. O compromisso de formar o profissional que se deseja ao final significa adequar o processo formativo para as necessidades específicas”, afirma Gianesi.

Nessa seara, a Faesa tem aproveitado ferramentas de IA para fazer a gestão da experiência dos estudantes, mapeando como estão em relação a notas, presença, regularidade financeira e engajamento em atividades extrassala como eventos, iniciação científica, atlética. “O foco no sucesso do estudante tem de ir além da sala de aula; essas informações nos ajudam a perceber se nossa proposta de valor institucional está de fato chegando aos alunos”, diz Carla.

As análises de dados e mesmo as ações preditivas da IA devem ser usadas para ajudar a humanizar as relações na instituição. Um mesmo “problema”, como a inadimplência, pode ter múltiplos motivos. “Às vezes o aluno atrasa a mensalidade porque perdeu o emprego. Então, a coordenadora de área de gestão de empregos pode ajudar. Mas em outras vezes  o aluno começou a tirar notas baixas, ficou desanimado, e por isso parou de pagar. Nesse caso, o encaminhamento é outro”, cita a gestora. E só com proximidade pessoal é possível entender as diferenças.

Com ferramentas tecnológicas é possível olhar para o projeto de futuro dos estudantes e personalizar o trabalho educativo. Ou, segundo Tomelin, “hiperpersonalizar”. “Como um professor numa sala vai dar conta de 40 ou 50 estudantes com diferentes contextos e interesses? Os algoritmos ajudam a compreender o contexto, criar estratégias de feedback, aconselhamento e orientação para cada um. Essas possibilidades ainda estão se revelando, mas a IA vai acelerar a capacidade de diagnóstico e prescrição, mas quem vai executar as estratégias de desenvolvimento por meio das relações humanas é o professor”, explica.

 

Busca de significado

Se pandemia e tecnologia causaram mudanças, o estudante que chega hoje às faculdades também mudou. Para muitos estudiosos, a geração atual é “digitalmente distraída” como nunca antes. Contudo, quem trabalha preparando jovens deveria rejeitar esse tipo de estigma e procurar entender os anseios de quem busca o ensino superior para, assim, motivá-los ao aprendizado.

A vida digital fomenta distrações. “Saímos da experiência de assistir a filmes de duas horas, com roteiro e lógica, para experiências fragmentadas sobre o cotidiano de tiktok. Os algoritmos despejam conteúdos com viés de interesse do espectador de maneira viciante”, afirma o gestor da Ânima. Cabe às IES resistir ao impulso de replicar estratégias de fragmentação e, em vez disso, buscar outras formas de alcançar o que Tomelin chama de um “engajamento curioso”. “Que o estudante sinta a satisfação plena com o envolvimento mais completo e menos aligeirado.”

“A distração é mais sentida quanto mais passivo você enxerga o aluno”, comenta  Irineu Gianesi, do Instituto Mauá de Tecnologia, acerca do estigma que envolve a atual geração: digitalmente distraída.

O método de transmissão de conhecimento de professor para aluno está sendo cada vez mais desafiado. “A distração é mais sentida quanto mais passivo você enxerga o aluno. Para nós não é tanto um problema porque temos cursos com características mão na massa muito forte; a instituição tem mais laboratórios do que salas de aula”, relata Gianesi.

Se hoje a geração de estudantes está mais preocupada com questões sociais do mundo e com sustentabilidade, é preciso apoiá-los a ter um aprendizado com sentido. “Tendo projetos no currículo por meio dos quais se aprendam conceitos fundamentais, que despertem interesse, conectados com o que é relevante, você deixa de lutar contra o aluno, brigando para ter atenção. Em vez disso, canaliza a energia do estudante para o aprendizado, desenvolve a motivação intrínseca, promove a autonomia e a confiança de que ele é capaz”, afirma Gianesi.

“Cada geração traz seu entusiasmo e motivação; tem características próprias, nem melhores nem piores que as das gerações anteriores”, afirma Mentges. A PUC-RS mantém um “observatório da juventude”, que todos os anos faz pesquisa sobre o perfil dos alunos; essas informações reais e locais ajudam os professores a se manterem atualizados. Ele afirma que não existe uma receita mágica para engajar, mas conhecer seu público dá subsídios para pensar estratégias. “A atual geração é mais conectada, é motivada a desafios reais, causas factíveis. E ela não tolera preconceitos – o que é sim positivo.”

 

Trabalhabilidade

A geração atual é “mais conectada, é motivada a desafios reais, causas factíveis. E ela não tolera preconceitos – o que é sim positivo”, fala Manuir Mentges, reitor da PUC-RS.

Uma das urgências do país é investir em cursos de ciências, tecnologia, engenharias e matemática, o campo chamado de STEM, no acrônimo em inglês. “Há cursos de baixa demanda com muita relevância. O Brasil está ficando para trás no STEM. Mas nossa juventude tem de estudar para aprender coisas em que haja demanda”, afirma Freitas. O diretor defende um esforço nacional e governamental, porque o fortalecimento do STEM inclui desde dar a base de conhecimento durante os anos do ensino fundamental e médio, até abrir e financiar centros de pesquisa, passando por estimular abertura de cursos universitários na área.

Uma maneira de aumentar a atratividade das engenharias é mostrar aos jovens o potencial de transformação social que os engenheiros têm na atualidade, defende Gianasi. “A área é vista por muitos como a responsável por problemas como a crise climática, mas também é a responsável por tentar lidar com esses problemas, criar processos e produtos mais sustentáveis, fazer a transição energética.”

As instituições fazem a sua parte ao manterem contato com mercado e sociedade, tornando os currículos “vivos”, o que potencializa a formação de profissionais com competências de fato relevantes. “Buscamos o contato com empresas, que trazem desafios – pensamos e levamos soluções. Isso acontece em projetos integradores e disciplinas de extensão. Nossa premissa é uma entrega real, nunca uma simulação”, relata Carla, da Faesa.

“Temos investido em trilhas de inovação e empreendedorismo sob o conceito de trabalhabilidade, porque o estudante não precisa necessariamente ser empregado; ele pode ter seu negócio. Fazemos isso com projetos, maratonas de desenvolvimento, disciplinas que fomentam a inovação, que conectem graduação e pós ao parque tecnológico”, cita Mentges. A proposta é que o estudante não tenha apenas de se sujeitar às expectativas do mercado e possa ele mesmo ser protagonista de sua carreira.

Mais do que reagir às mudanças, o ensino superior deve propor transformações ao mundo. “A universidade tem de olhar para a felicidade, para as amizades, para o propósito de vida e de construção de carreiras que não se resumem a dinheiro. Ela amplia seu papel e se torna um lugar de esperança”, diz o reitor da PUC-RS.  

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