Saber ler e escrever não garante autonomia no uso do mundo digital

Inaf passa a medir o analfabetismo digital e revela que 4 em cada 10 brasileiros escolarizados têm dificuldade para lidar com tarefas básicas online

Você certamente conhece alguém que resiste ou tem dificuldade em relação à tecnologia. Há os que recusam usar o smartphone, como aqueles que precisam de ajuda para fazer compras online. Também é comum encontrar quem domine os áudios do WhatsApp, mas não saiba anexar uma foto pelo aplicativo. Poucas vezes se trata de mera opção. A maioria dos casos é falta de conhecimento digital.

Dos pagamentos por Pix às ferramentas de inteligência artificial, não dá mais para fugir do mundo digital na vida cotidiana. O fenômeno do alfabetismo digital também passou a ser observado pelo Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), estudo que mede os níveis de alfabetismo funcional – ou seja, quando a pessoa sabe ler e escrever palavras simples, mas não consegue compreender, interpretar ou aplicar essas informações nas situações cotidianas.

Segundo Ana Lucia Lima, coordenadora do Inaf e fundadora da Rede Conhecimento Social, a inclusão da alfabetização digital como uma nova dimensão do estudo reflete justamente o impacto crescente da tecnologia em todos os setores. “Sem essa abordagem, a pesquisa estaria incompleta”, afirma. “Vivemos em uma sociedade cada vez mais digital, e quem não domina minimamente esse ambiente enfrenta desvantagens”, completa. A pesquisa também é dirigida pela Ação Educativa, e correalizada com Fundação Itaú, Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Apresentada por Ana Lima e Roberto Catelli Júnior (da Ação Educativa), a pesquisa foi lançada na segunda-feira, 5, em evento no Itaú Cultural, em São Paulo. Os dados trazem um alerta importante: mesmo pessoas com bom nível de alfabetização têm dificuldades para realizar tarefas simples na internet. 

Em linhas gerais, 40% dos alfabetizados em nível consolidado, ou proficientes, apresentaram médio ou baixo desempenho em tarefas digitais. E 95% dos analfabetos só conseguem realizar um número bastante limitado ao que foi proposto durante o levantamento, que ouviu 2.554 indivíduos, de 15 a 64 anos, entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025, em todas as regiões do país.

O Inaf classifica as pessoas conforme o nível de alfabetismo com base em um teste aplicado a essa amostra da população. São eles: Analfabetos funcionais: conseguem ler palavras ou frases muito simples e identificar números familiares, como o telefone ou o preço de um produto. Não compreendem textos mais longos nem conseguem resolver situações que exijam interpretação ou cálculo. Alfabetizados em nível elementar: conseguem localizar informações em textos de média complexidade e resolver problemas que envolvem operações e gráficos simples. Esse grupo demonstra alguma autonomia, mas com limitações para lidar com conteúdos mais elaborados. Alfabetizados em nível consolidado: reúne pessoas com níveis intermediário e proficiente. Elas compreendem textos diversos, fazem inferências, interpretam gráficos, resolvem cálculos com porcentagens e proporções e são capazes de argumentar com base em evidências. Os mais avançados, no nível proficiente, ainda produzem textos complexos e lidam com problemas que exigem raciocínio em múltiplas etapas. Caminhos da pesquisa

Quando a primeira edição do Inaf foi realizada, em 2001, o acesso às tecnologias da informação e comunicação ainda era bastante limitado. Em 2008, após a divulgação de seis edições do estudo, 40% da população já acessava a internet pelo celular. Em 2024, esse número saltou para 88% dos brasileiros, que passaram a utilizar o celular como principal meio de conexão. Definir como medir o letramento digital, no entanto, não foi tarefa simples, como destacam os pesquisadores. “Esta primeira edição foi totalmente experimental. Tivemos que criar uma metodologia do zero, definir o que medir, como medir e simular tarefas reais no celular”, explicam Ana e Roberto. As situações simuladas durante a pesquisa, chamadas de “trilhas”, foram desenvolvidas para avaliar desde operações básicas até a leitura crítica e a produção de conteúdo digital. Para avaliar as habilidades digitais dos entrevistados, foram propostas três tarefas cotidianas:

  • Na Trilha 1, os participantes precisavam comprar um tênis pela internet e perceber um golpe com valor de Pix suspeito. “Apenas 31% do grupo mais letrado consegue identificar a fraude e agir corretamente”, informam os pesquisadores. Entre os alfabetizados em nível elementar, o número cai para 13%. 
  • A Trilha 2, que simulava uma conversa via WhatsApp para escolher um filme, exigia escrita e justificativa, foi concluída por apenas 4% dos entrevistados com nível elementar. 
  • Já a Trilha 3, que envolvia o cadastro em uma plataforma com criação de senha e envio de imagem, contou com 17% de conclusão pelo mesmo público. 

Escolaridade e renda também influenciam alfabetismo digital

A escolaridade tem forte impacto na pesquisa: 96% das pessoas que nunca frequentaram a escola ficaram no nível mais baixo da avaliação digital. Mesmo entre quem concluiu o ensino superior, 9% não conseguiram bom desempenho. Quanto maior o nível de escolaridade, melhor o desempenho digital. “Entre os que têm ensino superior, 90% estão nos níveis médio ou alto. Entre os sem escolaridade formal, esse número cai para apenas 4%”, diz Roberto. Os resultados também mostram que 20% da população avaliada tem baixo desempenho digital, com limitações até para ações básicas, como clicar ou rolar a tela. “Essas pessoas têm acesso, mas não conseguem avançar”, comenta o especialista. A idade também é um fator relevante. “Os jovens de 15 a 29 anos tiveram o melhor desempenho, como esperado. Mas o grupo de 30 a 39 anos teve resultados similares, talvez por também ter crescido com a tecnologia”, explica. Curiosamente, tarefas como o preenchimento de formulários (Trilha 3) foram mais bem realizadas por pessoas de 40 a 64 anos, o que indica que a experiência de vida também influencia. A renda também faz diferença. Enquanto 21% dos que se saíram melhor nas tarefas digitais vivem em famílias com renda acima de cinco salários-mínimos, esse percentual cai para 10% entre os que tiveram desempenho médio e para apenas 3% entre os que ficaram no nível mais baixo.

Pensamento crítico

As demais mesas do encontro contaram com diferentes especialistas, entre eles Alexandre Barbosa, gerente do CETIC.br (Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação). Durante o debate, Alexandre chamou atenção para um dado preocupante: embora 90% da população brasileira com 10 anos ou mais esteja conectada à internet, o tipo de acesso é muitas vezes precário e limitado.

Segundo ele, grande parte dos brasileiros usa planos de dados móveis com franquia limitada. “Quando os dados acabam, a internet simplesmente para”, comenta. Nesses casos, os usuários recorrem ao chamado “zero rating”, modalidade que mantém ativos apenas alguns aplicativos – como WhatsApp e Facebook – mesmo sem créditos disponíveis.

Alexandre destacou ainda que, embora o número de pessoas conectadas seja alto, 60% acessa a internet exclusivamente por meio do celular. Essa realidade, segundo ele, impõe barreiras significativas para a educação digital e para a adoção de metodologias pedagógicas mais complexas.

O acesso à internet vai muito além da simples conexão, ressalta. Alexandre pontua ser preciso garantir o que se chama de “conectividade significativa”, um conceito que vem ganhando força na literatura internacional e que o Brasil começa a mensurar de forma mais estruturada. “É preciso ter uma conectividade significativa. Esse conceito foi surgindo na literatura internacional e, no ano passado, nós [Cetic.br] fizemos um estudo reprocessando dados dos anos anteriores para entender as quatro dimensões da conectividade”.

As quatro dimensões são: 

  • acesso à internet, 
  • tipo e qualidade do dispositivo, 
  • habilidades digitais (capacidade crítica de uso da internet) 
  • sustentabilidade financeira.

“A questão não é só ter acesso. É com que dispositivo, com que qualidade, com que capacidade crítica de uso da internet e com que custo. Quão sustentável é pagar por isso?”, detalhou. 

Apesar de 90% da população brasileira com 10 anos ou mais estar conectada à internet, apenas 24% têm o que o estudo classifica como o nível máximo de conectividade comunicativa. “Esses dados mostram que, embora o Brasil esteja muito próximo da universalização do acesso, estamos muito longe da universalização do uso qualificado e equitativo da internet.”

Para o especialista, os dados do Inaf reforçam a urgência de incluir pessoas com baixas habilidades nos serviços públicos, garantindo um acesso efetivo à cidadania digital. “A discussão está só começando.”

Educação midiática e alfabetismo digital

Dentro e fora da educação, o uso crítico da tecnologia precisa ganhar espaço, concorda Tereza Farias, coordenadora-geral de estratégia da educação básica do MEC (Ministério da Educação). Ela defende que as instituições de ensino devem superar a abordagem técnica e promover ativamente o letramento midiático, a produção de conteúdo responsável e a criação de ambientes online mais seguros para crianças e jovens. “Ao longo da jornada escolar, esses adolescentes ganham maior autonomia e acesso a dispositivos móveis, conectando-os diretamente ao universo digital. Isso os torna mais suscetíveis a informações falsas e prejudiciais, especialmente quando ainda estão em processo de desenvolvimento crítico e analítico”, explicou Teresa.

Para enfrentar esse desafio, o MEC criou um grupo de trabalho dedicado à educação midiática para adolescentes no contexto escolar, do qual o Porvir faz parte. O objetivo desse grupo é promover a formação de habilidades que permitam aos estudantes identificar fontes confiáveis, compreender mecanismos de manipulação midiática e engajar-se de forma responsável no ambiente digital.

“A educação midiática não só ajuda os alunos a entenderem melhor o mundo digital, mas também fortalece a construção de um ambiente escolar mais participativo e crítico”, afirma a especialista.

Olhar para a EJA

Em um país onde cerca de 9,3 milhões de brasileiros ainda são analfabetos, a EJA (Educação de Jovens e Adultos) precisa ir além da alfabetização tradicional e incorporar o letramento digital. Afinal, concordam os especialistas, alfabetizar digitalmente se tornou interfere no pleno exercício da cidadania.

As falas de Timothy Denis Ireland, coordenador da Cátedra Unesco de Educação de Jovens e Adultos, e de Alexsandro Santos, diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Básica no MEC, encontram-se na crítica ao modelo atual e na proposta de ações intersetoriais e territorializadas. “A EJA, como está, não funciona”, ressaltou Timothy. Para ele, a queda nas matrículas é um sinal de que o modelo atual perdeu o sentido para quem mais precisa. Com base em sua experiência na gestão pública, em projetos de educação no local de trabalho e em referências internacionais, defende que é preciso repensar onde e como a aprendizagem acontece. “Tenho uma certa alergia à ideia de escola formal, mas um grande apreço pela ideia de aprendizagem”, afirmou. Alexsandro também questionou a eficácia do modelo tradicional para jovens e adultos que já não se identificam com a escola. “Se o projeto de escolarização não faz mais sentido para essas pessoas, elas não podem ser privadas do direito à educação. Precisamos pensar em outras formas de garantir esse direito”, defende. Ele acrescentou que “a EJA precisa se reorganizar para dar conta das demandas contemporâneas, que não estão atualizadas nas propostas atuais”.

Ambos enfatizaram a importância de uma abordagem intersetorial. “Não dá para resolver o problema do letramento apenas dentro da escola. É preciso convocar o setor produtivo, os movimentos sociais, os equipamentos culturais, os territórios. A alfabetização é responsabilidade coletiva”, aponta. Timothy também compartilhou a experiência do Projeto Escola Zé Peão, que levava a educação para canteiros de obras. “Usamos os próprios conteúdos do trabalho para ensinar linguagem e matemática. E introduzimos celulares e aplicativos para alfabetização digital básica”, explicou. Para ele, é essencial criar “espaços comunitários de aprendizagem” que articulem educação com cultura, tecnologia e território.

Os dados do Inaf servem como alerta quanto como base para novas políticas públicas. “O Inaf nos dá uma base sólida para pensar o futuro da educação no Brasil, também da educação de jovens e adultos. E esse futuro precisa ser construído de forma articulada, com novos espaços e formatos de aprendizagem”, conclui o especialista da Unesco.

Saiba mais em: https://porvir.org/alfabetismo-digital-inaf/

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