Alunos com alto desempenho precisam ser identificados, receber estímulos adequados e ter apoio socioemocional para alcançarem todo o seu potencial
Alunos com altas habilidades ou superdotação ainda são um público invisível em muitas escolas brasileiras. Embora a legislação reconheça o direito a estratégias diferenciadas, como Atendimento Educacional Especializado (AEE), aceleração e enriquecimento curricular, a realidade mostra que a maioria desses estudantes passa despercebida no cotidiano escolar. Sem o devido reconhecimento, eles podem ser confundidos com “bagunceiros”, por demonstrarem inquietação, ou ficarem desmotivados diante da falta de desafios que deem conta da sua curiosidade e capacidade de aprender.
Mas, afinal, quem são esses alunos? “Um estudante com altas habilidades e superdotação é aquele que apresenta um potencial ou um desempenho maior que seus pares em alguma área do conhecimento”, explica Denise Arantes Brero, doutora em Psicologia, especialista em altas habilidades e diretora do Núcleo Paulista de Atenção à Superdotação (NPAS). Segundo ela, trata-se de crianças e jovens que aprendem com rapidez e podem apresentar características como vocabulário avançado, criatividade intensa e interesse profundo em determinadas áreas. “Muitas vezes, os pais percebem marcos de precocidade, como falar frases complexas e se alfabetizar mais cedo e se interessar por leitura ou Matemática antes do esperado”, acrescenta.
Apesar dessas pistas, a identificação nem sempre é simples. Denise lembra que existem diferentes perfis de superdotação, que vão além da performance escolar. “Há a superdotação acadêmica, intelectual, na liderança, nas artes, na psicomotricidade. Nem todos terão notas altas em 100% das disciplinas”, aponta. Por isso, muitos alunos ficam invisíveis, já que as escolas ainda associam superdotação apenas a quem é “gênio” em todas as áreas ou sempre tira nota 10. Essa visão contrasta com estimativas internacionais, que indicam entre 3% e 5% da população com algum tipo de alta habilidade — podendo chegar a 10% ou 20%, dependendo do critério adotado. No Brasil, os registros oficiais estão muito abaixo desse patamar.
De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica 2024, há 43.950 matrículas de alunos com altas habilidades/superdotação em classes comuns. Em um universo de mais de 47 milhões de estudantes da Educação Básica, isso representa apenas 0,094%. O dado não reflete a realidade, mas sim a dificuldade estrutural do país em reconhecer esses estudantes e registrá-los de forma adequada”, considera Vera Lúcia Capellini, docente da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru (SP), especialista em Educação Especial e coordenadora do grupo de pesquisa “A inclusão da pessoa com deficiência, TGD e superdotação e os contextos de aprendizagem e desenvolvimento”. Essa subnotificação, de acordo com ela, está ligada sobretudo à falta de preparo dos professores para identificar manifestações diversas da superdotação e à ausência de clareza nos registros do Censo, o que mantém esses alunos invisíveis em boa parte das redes.
Se o tema das altas habilidades mal aparece nas estatísticas, no dia a dia da escola a situação não é muito diferente. Para Leandro da Nóbrega Pinheiro, supervisor de ensino da rede municipal de Cubatão (SP), a invisibilidade é o primeiro grande obstáculo. “De um modo geral, o assunto não surge nas formações, nem nas discussões das redes públicas ou privadas. Esse tema é inexistente porque esses estudantes vivem uma situação de invisibilidade”, afirma.
Segundo ele, que atua como docente, coordenador e diretor há 25 anos, quando o assunto é provocado, a reação costuma ser imediata. “Nunca encontrei resistência. Pelo contrário, os professores se interessam e se abrem para compartilhar casos. Mas é preciso romper a cortina da invisibilidade para que isso aconteça.”
Essa ausência de um debate claro contribui para perpetuar mitos que atrapalham a identificação e o atendimento. O primeiro deles é a ideia da raridade. “Muitos acreditam que a superdotação é algo que só aparece uma vez a cada século, como se estivéssemos falando de Einstein. Quando mostramos que pesquisas apontam pelo menos 5% da população com altas habilidades, os professores se lembram de casos concretos e percebem que já tiveram esses alunos em sala”, conta. Outro equívoco recorrente é imaginar que esses estudantes não precisam de apoio porque “já vão bem sozinhos”.
O resultado é que, sem reconhecimento, muitos alunos acabam sendo mal interpretados. Leandro cita situações comuns de estudantes que já dominam o conteúdo e se mostram entediados, apáticos ou até questionadores – e que acabam sendo rotulados como impertinentes. “Já acompanhei crianças orientadas a não responder em sala porque sabiam a matéria antes dos colegas. Isso gera sofrimento, porque elas não entendem por que estão sendo silenciadas”, relata. Em outros casos, colegas rejeitam o estudante que se destaca, reforçando o isolamento.
Outro ponto delicado é a aceleração escolar, que aparece com frequência nas demandas das famílias, mas nem sempre é a melhor saída. “Muitas vezes, os pais veem a aceleração como única solução, e os professores, por outro lado, se fecham contra o tema porque só conhecem exemplos extremos, como crianças que entram muito cedo na faculdade e perdem a infância. Isso cria um impasse”, observa. Leandro lembra que a aceleração pode ser positiva, mas precisa ser discutida com responsabilidade a partir de avaliação cuidadosa e considerando também aspectos emocionais e sociais.
Na prática, explica ele, não se trata de “pular séries”, mas de garantir acesso a conteúdos diferenciados, oficinas ou projetos que atendam ao ritmo de aprendizagem desses estudantes sem isolá-los da convivência com os colegas. “Atender esses alunos não significa segregá-los ou criar uma escola à parte. É necessário garantir que tenham espaço para se desenvolver sem perder o direito à socialização e à infância”, resume.
O Ministério da Educação (MEC) define pessoas com altas habilidades ou superdotadas como aquelas que apresentam elevado potencial intelectual, acadêmico, de liderança, psicomotor e artístico, de forma isolada ou combinada, além de apresentarem grande criatividade e envolvimento na aprendizagem e na realização de tarefas em áreas de seu interesse. Veja como essas características podem se manifestar:
Mas ter altas habilidades em uma área não significa que o estudante não enfrente desafios em outras. “O aluno pode ir muito bem em Matemática, mas ter dificuldades motoras ou de linguagem. Ou ainda se destacar em uma disciplina e apresentar problemas de aprendizagem em outras”, explica Denise.
Esse descompasso, chamado de assincronia do desenvolvimento, exige que a escola e a família valorizem os pontos fortes e ofereçam apoio nas fragilidades. Isso porque ignorar essas necessidades pode trazer consequências sérias. “Quando não são identificados na infância ou adolescência, esses indivíduos ficam mais vulneráveis a transtornos como depressão e ansiedade. Muitos se desengajam da escola, perdem o interesse pelas aulas e apresentam baixo rendimento, mesmo com alto potencial”, alerta. Nessas situações, cabe à escola agir de forma intencional. Estratégias simples, como inseri-los em grupos de colegas, valorizar publicamente seus talentos e ao mesmo tempo estimular empatia, podem ajudar na convivência.
Outro desafio frequente está nas relações sociais. Interesses muito específicos e um nível de maturidade diferente dos colegas podem dificultar o convívio, levando ao isolamento ou à rejeição. Por isso, trabalhar competências socioemocionais é tão importante quanto estimular o aspecto cognitivo. “Às vezes, é preciso ensinar a criança a como fazer amizade ou a responder de maneira mais adequada para ser acolhida pelo grupo. Isso faz toda a diferença na experiência escolar”, reforça Denise. Esse apoio pode incluir o atendimento em salas de AEE, com acompanhamento especializado para orientar a interação social.
O atendimento a estudantes com altas habilidades não depende apenas da sensibilidade do professor em sala, mas de um compromisso institucional. A pesquisadora Vera lembra que a legislação já garante esse direito, prevendo estratégias como aceleração de estudos (quando o aluno progride para séries seguintes em menos tempo, de acordo com seu ritmo), enriquecimento curricular (com atividades que ampliam seus interesses e desafios, como oficinas temáticas, olimpíadas e projetos culturais) e Atendimento Educacional Especializado. “Não se trata de transformar o aluno em receptor passivo, mas em protagonista da própria aprendizagem por meio de práticas inovadoras, como gamificação e atividades maker; projetos interdisciplinares e flexibilização curricular, que prevê ajustes no percurso de aprendizagem, como trilhas de estudos diferenciadas.”
Para ela, a escola deve investir em ações desse tipo, que expandam as oportunidades de aprendizado, seja também por meio de agrupamentos, projetos de investigação ou atividades extracurriculares. No entanto, para que essas estratégias saiam do papel, é preciso superar dois obstáculos centrais: a falta de formação docente e a dificuldade de transformar o currículo em algo realmente flexível. “Muitos professores ainda não se sentem preparados para reconhecer esses estudantes e adaptar o planejamento. Sem apoio da gestão e políticas que garantam condições de trabalho, a tendência é que continuem invisíveis”, observa.
A experiência da Unesp, que desde 2012 atende centenas de alunos superdotados em laboratórios, cursos de férias e visitas culturais, mostra que é possível estimular esses talentos mesmo em contextos de recursos limitados. “O projeto nos ensinou que a formação de professores é decisiva. Quando o docente tem clareza sobre como identificar e apoiar esses estudantes, o engajamento cresce, e a aprendizagem se torna mais significativa para toda a turma”, explica Vera.
O professor e supervisor de ensino Leandro concorda e reforça a necessidade de formação docente contínua, protocolos de identificação e planejamento pedagógico coletivo, em que diferentes professores se organizam para definir estratégias de atendimento. Para ele, incluir os superdotados é também aprimorar a qualidade da escola como um todo. “Enxergar os alunos com altas habilidades ajuda a melhorar o olhar para todos. A escola que não consegue acolher uma criança alfabetizada aos seis anos, por exemplo, provavelmente também terá dificuldade em atender um aluno com deficiência ou outro que enfrenta problemas de aprendizagem. Reconhecer o potencial é parte de reconhecer a diversidade da sala de aula”, conclui.
Confira algumas possibilidades:
Saiba mais em: https://novaescola.org.br/conteudo/22517/desafios-inclusao-altas-habilidades-superdotacao
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