Conheça a visão de Michael Rich, autor de "O guia do midiatra", sobre bem-estar digital e alfabetização midiática: menos proibição e mais diálogo, propósito e autonomia para os jovens
A questão não é proibir, mas sim orientar. Em um mundo onde a vida de crianças e adolescentes é moldada por telas, da interação social à educação, a pergunta sobre como incentivá-los a usar a tecnologia de forma consciente e saudável se tornou relevante. Essa preocupação, compartilhada por educadores e famílias, foi o tema de uma apresentação de Michael Rich, pediatra e professor da Harvard Medical School, nos Estados Unidos.
Nesta terça-feira (16), em evento promovido pelo Instituto Palavra Aberta na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) em São Paulo, o pediatra apresentou sua abordagem sobre o bem-estar digital de crianças e adolescentes. O evento também marcou o lançamento da edição em português de seu livro, “O guia do midiatra – Como criar crianças saudáveis, inteligentes e respeitosas em um mundo saturado de telas” (Artmed, 440 páginas).
Para Michael, a solução para os desafios da tecnologia não está na proibição, mas na confiança e capacitação. Como fundador e diretor do Digital Wellness Lab (Laboratório de Bem-Estar Digital), um centro de pesquisa em Harvard, ele estuda os impactos das mídias interativas e traduz esses resultados em orientações práticas para famílias, educadores e a indústria de tecnologia. A partir dessas evidências, ele propõe uma perspectiva inovadora, focada na educação e mentoria como ferramentas para o bem-estar digital. Assumindo o papel de “midiatra” (um termo que une “mídia” e “pediatra”), ele sugere que pais e educadores deixem de ser “policiais” e se tornem guias e mentores. Ele argumenta que a verdadeira segurança online não depende de aplicativos de controle parental, mas sim do desenvolvimento da alfabetização midiática e do pensamento crítico. Sua filosofia, portanto, não busca limitar o tempo de tela, mas dar propósito ao uso da tecnologia, transformando-a em uma ferramenta de criação e conexão.
Sua filosofia se baseia em três pilares, chamados de “os três Ms”:
Durante a palestra, Michael relembrou sua experiência no cinema e fez críticas às análises do psicólogo Jonathan Haidt, autor do livro “Geração Ansiosa”, lançado no Brasil no ano passado.
Na tradução do livro para a versão brasileira, o subtítulo acabou perdendo o termo “alegria”, originalmente, “joy”. Ao ser questionado sobre a importância de uma abordagem pautada na alegria para a educação, especialmente no contexto do uso de telas, o autor sugere que este sentimento deve ser o principal impulso para transformar os hábitos das famílias.
Ao comunicar essa perspectiva, Michael observa uma transformação imediata: a criança e o responsável sentem um alívio mútuo. Isso ocorre porque, ao deixar de “policiar” os filhos, os pais permitem que a criança desenvolva sua autonomia e individualidade, um impulso natural para se tornar uma pessoa independente. A abordagem da alegria, portanto, não apenas alivia o estresse e a tensão, mas também promove um relacionamento mais saudável e baseado na confiança, permitindo que a criança floresça em vez de se sentir constantemente controlada.
Quando observamos a quantidade de horas que passamos ativamente diante de telas (muitas vezes usando duas ou mais ao mesmo tempo), percebemos que essas crianças vivem no ambiente digital tanto quanto, ou até mais do que, no mundo físico. Para elas, não há uma separação: é um único espaço do qual transitam constantemente para dentro e para fora. “A proposta é simples: esteja com elas”. É comum que pais procurem o especialista reclamando: “Não aguento mais. Ele passa o tempo todo jogando Grand Theft Auto.” A orientação que ele costuma oferecer é simples e, para muitos, surpreendente: “Sente-se ao lado dele, pegue o controle e jogue junto.” A reação, quase sempre, é de espanto: “O quê? Você quer que eu jogue com ele? Mas ele vai me vencer!”. E a resposta vem com tranquilidade: “Sim, ele vai te vencer.”
Mas o gesto de sentar-se ao lado do filho e se colocar na posição de aprendiz comunica algo muito mais profundo do que um simples interesse pelo jogo: transmite amor, respeito e disposição para compreender aquilo que o envolve. E, então, quando o adulto finalmente dominar os 47 comandos necessários para roubar um carro virtual, poderá se virar para o filho e dizer: “Consegui!” — e, a partir daí, abrir espaço para um novo tipo de conversa: “Agora, vamos conversar um pouco sobre o que te atrai tanto nessa repetição de roubos no jogo.”
Para explicar o comportamento de adolescentes online, ele citou as “finstas” (gíria derivada da junção de “fake Instagram accounts”, contas falsas do Instagram), como são conhecidos os perfis alternativos que uma pessoa cria no Instagram com o objetivo de compartilhar conteúdo mais pessoal, espontâneo ou íntimo apenas com um grupo restrito de amigos de confiança. Nestes espaços, jovens costumam compartilham quem são com mais autenticidade. “O contraste com os perfis públicos, usados para “parecer bem”, ajuda a entender por que tantos se sentem inferiores ao rolar o a linha do tempo: todos parecem mais felizes, ricos e bonitos”, disse.
Michael descreveu um ideal: se usarmos as redes sociais com honestidade e empatia, elas podem aproximar jovens de lados opostos de conflitos, ajudando-os a enxergar o outro como pessoa, não inimigo. Enquanto esse momento não chega, cabe lembrar os riscos mencionados na publicação “Crianças, adolescentes e telas – Guia sobre usos de dispositivos digitais”, lançado pelo governo federal. Naquele material, é ressaltado que o acesso a redes sociais sem mediação pode ser perigoso, principalmente para adolescentes. O excesso de tempo online pode causar problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, além de afetar a qualidade do sono e a autoestima. A necessidade de estar sempre conectado causada pelo medo de perder algo gera ainda mais ansiedade. Outro grande risco é a exposição a conteúdos e pessoas prejudiciais, como casos de cyberbullying (intimidação sistemática no ambiente online) e assédio, que trazem como consequência comportamentos impulsivos e até mesmo a autolesão.
Ao tratar de privacidade, o pediatra alertou: provocações ou piadas sobre relacionamentos fazem adolescentes se fecharem. O caminho é respeitar a independência e manter a porta aberta ao diálogo. Ele também mencionou um dado preocupante dos EUA: a idade média de primeiro acesso a pornografia é de 9 anos (o que implica haver crianças ainda menores encontrando esse conteúdo). Em clínica, recebe jovens que passaram a adolescência consumindo pornografia e depois sentem medo de intimidade no mundo real. A orientação aos pais: seja porto seguro, estabeleça limites claros sem punições automáticas.
Michael rejeita receitas simplistas (“30 minutos por dia”). Com múltiplas telas ao redor, a pergunta útil não é “quanto tempo?”, mas “o que a tela está substituindo?”: sono, estudo, esporte, convivência? Ele recomenda intencionalidade e a prática de atividades sem tela. inclusive resgatar o tédio, fértil para a criatividade. ”Temos que trazer de volta o tédio, porque o tédio é onde a criatividade e a imaginação acontecem”, disse.
Em sua palestra, o pediatra trouxe também uma imagem de como a pressa e a aversão ao silêncio mudaram nossos hábitos. “Não conseguimos entrar em um elevador ou em um ônibus sem pegar nossos smartphones. Se andamos na rua e todos estão com seus telefones e seus fones de ouvido, sorrir para alguém que não conhecemos parece estranho. Antes, era um gesto amigável; agora, soa como se estivéssemos invadindo a privacidade alheia”.
Em seguida, compartilhou uma experiência pessoal. Depois de um dia intenso de atendimentos a jovens que haviam abandonado a escola ou até tentado o suicídio por causa de situações vividas online, saiu exausto do hospital. Mas ao olhar para o céu, se deparou com um pôr do sol vibrante, em tons de rosa, dourado e roxo. Aquele instante trouxe alívio e esperança.
O contraste, porém, veio logo depois: ao redor, quase todos estavam tirando fotos para postar, em vez de apreciar o momento. Ele destacou como nenhuma foto, por melhor ou pior que fosse o resultado do clique, consegue capturar a potência real de um pôr do sol. Para educadores e famílias, a cena deixa um recado: precisamos reaprender a viver o presente, permitir o tédio e a contemplação, para que as telas não roubem a intensidade da vida real.
Michael destacou a alfabetização midiática como ferramenta essencial para o pensamento crítico, pois permite compreender que a mídia não apresenta a “verdade”, mas sim um “produto manufaturado”, construído a partir de interesses específicos. Para ele, é fundamental considerar diferentes perspectivas culturais e sociais diante de uma mesma mensagem. Esse olhar crítico é o ponto de partida para ir além do letramento e alcançar a fluência midiática, isto é, a capacidade de produzir e dialogar de forma responsável no ambiente digital.
Nesse momento, ele retomou sua trajetória profissional. Antes da medicina, atuou por 12 anos no cinema, tendo sido assistente de direção de Akira Kurosawa, ícone do cinema japonês. Recordou o filme “Rashomon”, em que um mesmo crime é narrado por diferentes personagens. Cada um apresenta sua própria versão, e nenhuma coincide com a outra. O que parece verdade para um é distorcido para outro. Assim como na vida real, a grande lição é que não existe uma verdade absoluta, mas múltiplas interpretações moldadas por quem as conta.
Atualmente, argumentou, não basta desconstruir conteúdos e proteger-se do que entra, é preciso também pensar sobre o que se divulga. A questão é: como nos comunicamos? Hoje estamos permanentemente em diálogo, não apenas como espectadores, mas como interlocutores num contínuo chamado e resposta. Por isso é essencial considerar como as outras pessoas vão ouvir e interpretar o que mostramos. “Reconhecendo que cada um possui apenas parte da experiência mundial, é preciso aprender a ouvir com atenção, inclusive “entrelinhas”, tanto nas conversas presenciais quanto online”. Esse exercício de escuta e abertura, segundo ele, pode ser um instrumento de paz: quando nos tornamos suficientemente vulneráveis para dialogar, ampliamos a possibilidade de chegar a um lugar mais compreensivo e coletivo.
Ao ser convidado a explicar o trecho do livro “se você não está preparado para discutir a sociedade de igual para igual com seu filho, então você não está preparado para lhe dar um smartphone”, o pediatra disse que estamos passando por um momento em que é necessário exercitar a humildade. “É entender que ainda não temos todas as respostas. E também perceber que há coisas que podemos aprender com essa criança. Que nos ajudarão e nos ajudarão a descobrir juntos o que está acontecendo”.
Segundo Michael, muitos adultos buscam respostas binárias (proibir/liberar), mas a realidade é nuançada. Ele propõe trocar “regras” por expectativas combinadas em família e escola. E lembra ainda que acordos que valem para todos, iinclusive adultos, reduzindo o jogo de “quebrar a regra” e aumentando o compromisso.
Ele ressaltou que não é possível depender apenas das empresas de tecnologia ou dos legisladores para proteger crianças e adolescentes no ambiente digital. A responsabilidade maior recai sobre famílias e educadores, que precisam desenvolver uma postura consciente e atenta. Isso não significa isolar-se do mundo, mas reconhecer a diversidade da humanidade e compreender que sempre existirão “atores ruins”. Para ele, o desafio não está em viver com medo deles, e sim em ser bons atores sociais, adotando atitudes éticas, empáticas e responsáveis. O caminho, afirmou, é ensinar pelo exemplo e mostrar, na prática, como construir relações mais seguras e humanas também no espaço online
Ele afirmou não considerar as propostas de Jonathan Haidt realmente úteis por dois motivos principais. Primeiro, porque o autor seleciona apenas as pesquisas que confirmam suas ideias prévias, ignorando o equilíbrio mais amplo que a ciência oferece. Segundo, porque Haidt não trabalha diretamente com os jovens: não os escuta, não acompanha suas dificuldades cotidianas nem aprende com suas percepções.
Na prática, essa distância abre espaço para soluções simplistas, como estabelecer idades fixas para o uso de smartphones ou redes sociais (“aos 14 pode celular, aos 16 pode mídia social”), sem que existam dados sólidos que sustentem tais limites. Para Michael, esse tipo de abordagem transforma um problema complexo e cheio de nuances em respostas binárias, fáceis de serem repetidas por pais e legisladores, mas pouco eficazes na realidade.
Ele comparou essa lógica ao antigo slogan “basta dizer não às drogas”. O simples “não” não basta: é preciso compreender por que alguém diria não e quais ferramentas são necessárias para que o jovem faça escolhas conscientes. Nesse ponto, Michael reconheceu que Haidt provavelmente “vende 100 mil livros para cada um dos meus”, mas observou que suas teses acabam servindo mais para “falar o que todo mundo quer ouvir” ou “jogar para a torcida”, agradando ao debate público sem oferecer caminhos práticos.
“Eu sou grato a ele por levantar o alarme dos riscos online e espero que as pessoas consigam usar essas informações, inclusive as que vocês estão produzindo em seus cursos de educação midiática, para adotar uma abordagem mais humana e com mais nuances. E, francamente, uma abordagem que seja também mais resiliente e flexível, porque este é um momento em que se pode simplesmente dizer: ‘corte as mídias sociais, corte o smartphone’”, ironizou.
Ao comentar como escolas podem equilibrar o uso de tecnologia, o pediatra comparou as diferentes ondas que já atingiram escolas, como uma quase que imposição de um dispositivo por estudante. “Muitas vezes, um tablet compartilhado entre duas ou três crianças se mostra mais eficaz. Isso porque estimula a sinergia e a discussão em grupo. O aprendizado é essencialmente relacional: não depende apenas do material, mas das interações entre professor e aluno e também entre os próprios estudantes”, disse.
Michael alertou, porém, para o risco de cair em falsas dicotomias, como “tablet é ruim, caneta é boa”. Na sua visão, todos são apenas ferramentas. Smartphones, tablets e computadores não devem ser tratados como brinquedos, que se dá como prêmio ou se retira como castigo, mas como instrumentos que cumprem funções específicas. “Um dispositivo pode, por exemplo, levar uma criança de dez anos a conhecer o topo do Monte Everest ou a superfície de Marte em uma única aula. Essa é uma capacidade extraordinária. Mas o mesmo recurso também pode expor a criança a usos inadequados, como espionagem ou acesso a pornografia. Por isso, o ponto central é aprender a usar essas ferramentas de forma eficaz”, analisou.
Nesse processo, o papel dos adultos é o de mentores: observar como cada criança responde, avançar quando há domínio e recuar quando ainda existe insegurança. E, sobretudo, evitar que a relação seja conduzida pelo medo.
Ele destacou a importância de refletir sobre o verdadeiro papel da escola na vida de uma criança. Segundo ele, há dois aspectos centrais. O primeiro é o aprendizado didático — matemática, ciências, literatura, artes e demais componentes curriculares. Embora fundamentais, esses conhecimentos podem ou não ser utilizados no futuro. O segundo aspecto, por outro lado, é o aprendizado socioemocional, que acontece a cada instante e acompanha o indivíduo por toda a vida. Nesse sentido, Michael demonstrou como os smartphones se inserem nesses dois campos. No aprendizado acadêmico, muitas vezes funcionam como distração. Durante o período de ensino remoto na pandemia, ficou evidente que o celular, por sua limitação de tela, não era suficiente para uma aprendizagem eficaz. Já no campo socioemocional, a escola é o espaço em que a criança aprende a se relacionar: descobrir de quem gosta ou não, trabalhar com quem pensa diferente, lidar com desafios, enfrentar o fracasso e levantar-se novamente.
Quando o smartphone se torna um canal constante para que pais fiscalizem cada detalhe, perguntando sobre provas, brigas ou situações do recreio, a criança perde a oportunidade de descobrir sozinha como agir diante das dificuldades. Essas experiências, frisou, são as que permanecem para a vida adulta. Afinal, “a mãe não estará no bolso deles quando tiverem 35 anos”. Michael reforçou, no entanto, que os celulares não devem ser tratados apenas como vilões. São ferramentas poderosas, mas precisam ser ensinadas e mediadas, assim como um computador ou até um lápis. O risco atual é que as crianças estejam aprendendo a usá-los sozinhas, sem orientação, e muitas vezes seguindo caminhos equivocados. O papel dos adultos é, portanto, guiá-las para que desenvolvam competências digitais de forma ética e humanizada.
O autor de “O guia do midiatra” concluiu agradecendo o trabalho dos educadores e lembrando que há materiais gratuitos disponíveis no site do Digital Wellness Lab, incluindo resultados de pesquisas recentes sobre pertencimento no ambiente digital.
Saiba mais em: https://porvir.org/bem-estar-digital-pediatra-harvard-orientar-uso-telas/
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