Escola só ganha com a inclusão de música no currículo

Ensino aliado à arte musical traz benefícios técnicos e socioemocionais, além de funcionar como fonte de debate sobre temas atuais

Ouvir música não é apenas uma forma de passar o tempo. É um exercício poderoso que desperta o cérebro para aprender, ativando a memória, a atenção, a linguagem e as emoções.

Da educação infantil ao ensino médio, o ensino musical amplia horizontes e apoia o desenvolvimento dos estudantes. Estudos mostram que a música enriquece o vocabulário, aprimora a dicção, fortalece o raciocínio lógico e promove o bem-estar emocional. Também favorece a socialização, estimula o corpo e a mente e contribui para a formação integral do indivíduo.

Mais do que uma disciplina escolar, a música é uma das expressões mais antigas da humanidade. Muito antes da escrita ou da agricultura, nossos ancestrais já se comunicavam por meio de sons, danças e ritmos. No álbum “Bailar en la Cueva” (2014), o músico uruguaio Jorge Drexler relembrou essa herança ao comentar, em entrevista ao ”El País”, que foram encontradas flautas feitas de ossos com cerca de 45 mil anos (sinal de que a música acompanha a humanidade desde suas origens). “A dança e a música nos definem como espécie”, resumiu o compositor.

Com tantos benefícios e uma trajetória profundamente ligada à nossa evolução, o ensino de música deveria ocupar um lugar central nas escolas. Essa relevância, inclusive, já é reconhecida por lei. 

Em agosto deste ano, a Lei nº 11.769 que alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) para tornar obrigatória a oferta de música na educação básica, completou 17 anos. Mesmo assim, sua aplicação ainda está longe de ser uma realidade.

Assim que a medida foi aprovada, em 2008, o próprio MEC (Ministério da Educação) já alertava que a formação docente seria o maior desafio para sua implementação. À época, o Censo da Educação Superior de 2006 registrava apenas 327 concluintes em cursos de música em todo o país. Em 2023, esse número chegou a 621, o que representa um avanço modesto diante da demanda existente nas redes de ensino.

Obstáculos na formação de professores

A Lei nº 11.769 representou um marco importante para o ensino de música no Brasil. Ao tornar o componente obrigatório na educação básica, ela deu legitimidade à área e ajudou a romper com a visão de que a música seria apenas uma atividade complementar ou recreativa, aponta Mário André Wanderley Oliveira, professor da Escola de Música da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e presidente da ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical). “Passamos a ter uma base legal que respalda a presença da música no currículo escolar”, afirma.

Ele explica, no entanto, que a legislação não determina de forma explícita que as aulas sejam ministradas por professores licenciados em música. “A lei estabelece a obrigatoriedade dos componentes curriculares, e cabe às redes de ensino garantirem que sejam conduzidos por profissionais devidamente habilitados”, observa.

Atuação

A ABEM atua desde 2008 junto às redes municipais, estaduais e federais para estimular a realização de concursos específicos para professores de música. “Há avanços, mas essa realidade é bastante desigual no território brasileiro: em alguns municípios esses concursos ocorrem; em outros, nunca ocorreram e não há nenhuma perspectiva de ocorrência.”

Assim como em outras áreas, essa é a graduação que prepara profissionais para ensinar, articulando formação musical e formação pedagógica.

Mário André explica que, em muitos estados e municípios, os concursos públicos são abertos para o cargo de “professor de artes”, reunindo diferentes linguagens artísticas em uma única vaga. Nesses casos, profissionais formados em música são aprovados, mas acabam tendo de atuar também com teatro, artes visuais e dança. Em outras situações, ocorre o oposto: o diploma de licenciatura em música é rejeitado para o cargo, o que é um contrassenso, pois essa formação deveria ser vista como essencial para o trabalho em sala de aula.

“Assim como em outras áreas, essa é a graduação que prepara profissionais para ensinar, articulando formação musical e formação pedagógica. Ou seja, didática da música, psicologia do desenvolvimento, fundamentos filosófico-socioantropológicos da educação e da música, além de compreensão de políticas públicas e legislação educacional”, explica.

Para o professor, ser músico ou ter experiência artística não garante preparo para a educação musical escolar. “Ensinar música na escola exige compreender processos de aprendizagem, planejar aulas, avaliar o desenvolvimento dos estudantes e dialogar com diretrizes curriculares.”

Boas práticas na escola pública

Vencedor da segunda edição do Prêmio Professor Porvir, na categoria educação financeira (com um projeto que integra música, cinema e finanças), o professor Sérgio Castanheira leciona na Escola Municipal Maestro Pixinguinha, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ).

Com uma trajetória marcada pela combinação entre arte e educação, já ministrou palestras e oficinas em Moçambique, Pará e Maranhão. Como músico, lançou dois álbuns autorais e atua como instrumentista e arranjador desde 2006. Sérgio atua na rede municipal do Rio desde 2011. Montou um estúdio de audiovisual onde, todos os anos, realiza gravações de videoclipes com estudantes da rede pública. Ele defende que a música deve estar integrada ao currículo escolar, tornando o aprendizado mais envolvente e promovendo diálogos com disciplinas como história, matemática e língua portuguesa.

“Aquele olhar da música como conservatório, voltado à formação mecânica de músicos, está ultrapassado. Hoje entendo a música como uma ferramenta para discutir e debater a sociedade em todas as suas dimensões”, afirma.

O professor e seus alunos produzem um videoclipe por ano. O tema é escolhido já no primeiro bimestre em uma roda de conversa e discutido nas aulas. A violência e a desigualdade social do entorno da escola, próxima ao Morro do Juramento, costumam ser assuntos discutidos constantemente.

Escolhendo o tema

O tema de 2025, por exemplo, é o racismo. Para a composição da música, feita por duas turmas de oitavo ano, conceitos como branquitude, apropriação cultural, racismo recreativo e reparação histórica foram debatidos nas aulas de música, matemática e história e incluídos na letra. Tudo é feito com o objetivo de desenvolver o pensamento crítico.

“Tem sempre algumas pessoas mais interessadas, outras com uma dificuldade maior de se concentrar. É assim mesmo, na tentativa e erro, que fazemos. Quando chegamos perto do nono ano, fica mais tranquilo. O debate fica mais aprofundado. Embora não seja fácil, é uma batalha, mas percebo que quando a gente constrói a música, consegue finalizar, começa a ensaiar, os debates ficam mais naturais e prazerosos, porque estamos próximos de uma coisa que eles criaram”, diz Sérgio.

O maior desafio de implementar a lei na escola, segundo o professor, é a falta de estrutura e de tempo de trabalho coletivo entre os docentes. Ele afirma que os profissionais são pressionados para atingir índices de proficiência dos alunos, o que faz com que projetos interdisciplinares fiquem em segundo plano. “Este ano, por exemplo, criamos um grupo interdisciplinar para trabalhar o racismo, mas nossa dificuldade é conseguir debater na escola. É sempre pelo WhatsApp, fora do horário.”

Programas de apoio

Para a diretora pedagógica do programa Brasil de Tuhu, Carla Rincón, a música é um instrumento de cidadania. Por isso, mais do que uma obrigatoriedade prevista em lei, ela defende que são necessárias políticas públicas, investimentos e formação continuada para garantir o acesso de todas as crianças à linguagem musical.

Criado em 2009 pela violinista em parceria com a Baluarte Cultura, o programa busca enfrentar esses desafios por meio de concertos didáticos interativos e oficinas de capacitação voltadas a educadores. As atividades utilizam metodologias lúdicas, como o uso de objetos do cotidiano para fazer música, e firmam parcerias com orquestras jovens em todo o país.

Até hoje, o projeto já alcançou mais de 77 mil crianças em 13 estados e formou mais de 1,3 mil educadores. “Queremos contribuir para um ambiente escolar mais criativo, acessível e acolhedor. A música tem o poder de ampliar repertórios, gerar vínculos e fortalecer o desenvolvimento das crianças. Este é o sonho coletivo de musicalizar o Brasil, o mesmo que inspirou Villa-Lobos e que hoje inspira a nossa missão”, afirma Paula Sued, sócia e diretora de produção da Baluarte, em referência ao maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887–1959).

Carla destaca que a música é essencial especialmente na primeira infância, até os seis anos de idade. “As escolas valorizam o trabalho que fazemos. A música desenvolve a sensibilização, a percepção, a iniciação à cidadania, a brasilidade, a sociabilidade e a resolução de problemas. Os benefícios são infinitos.”

Ela defende, no entanto, que é preciso garantir continuidade após essa etapa. A partir do ensino fundamental, ainda há resistência e falta de professores especializados. “É importante ensinar a partir da emoção, da interação com a música brasileira. Não necessariamente a música erudita, mas a brasileira em sua diversidade, principalmente o folclore, para formar cidadãos musicais”, explica.

Preparação de professores

Segundo Carla, muitas escolas optam por contratar professores de arte e capacitá-los para ensinar música e teatro. Esse é, inclusive, o principal público atendido pelo Brasil de Tuhu. “Eu gosto desse perfil. São pessoas abertas e dispostas a aceitar novos desafios musicais em sala de aula. A licenciatura em música ainda carece de abordagens mais lúdicas. Por que não ensinar unicamente através de músicas e jogos? A teoria isolada não é o caminho. Pode afastar as crianças, porque é muito intelectual. Só por meio da alegria é possível educar melhor.”

Criatividade e recursos alternativos

Nas oficinas de vivência musical do programa, objetos do cotidiano como baldes, panelas e colheres de pau se transformam em instrumentos musicais. Essa abordagem acessível e criativa permite que professores introduzam a música em sala de aula mesmo sem instrumentos tradicionais ou infraestrutura adequada. O uso de recursos alternativos desperta a criatividade tanto dos educadores quanto dos alunos.

A integração entre música e artes plásticas também é explorada. Com papel e lápis, as crianças são convidadas a desenhar instrumentos imaginários, transformando corpo, voz e gestos em uma verdadeira orquestra. “Trabalhamos muito a criatividade. Podemos criar atividades em que a criança só precisa de papel, cores, do corpo e dos movimentos. Incluímos também o silêncio. Levamos crianças para ouvirem o silêncio, para sentir os batimentos do coração. A maioria vive cercada de barulho. O silêncio é importantepara o ambiente musical. Mostramos como chegar até ele”, conta Carla.

“A música precisa ter a mesma importância que outras matérias, como a matemática. Já existem exemplos bem-sucedidos em países como Argentina, Venezuela e Colômbia. Acredito que a Funarte (Fundação Nacional das Artes) deveria liderar esse processo”, diz.

Saiba mais em: https://porvir.org/escola-ganha-inclusao-musica-curriculo/

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